Os contratos de locação em meio à pandemia de Covid-19

A pandemia ocasionada pelo COVID-19 tem acarretado um severo impacto econômico pelo mundo, especialmente em função das múltiplas decisões governamentais que determinam a paralisação de grande parte das atividades empresariais, visando a diminuição da disseminação da doença.

Como é de conhecimento público e notório, trata-se de uma crise sanitária sem precedentes, que ocasionou, dentre outras coisas, o fechamento de fronteiras; o controle de entrada e saída de pessoas; o confinamento social obrigatório; e a suspensão das atividades comerciais por prazo indeterminado.

Essas medidas, embora importantes, influem diretamente nos rendimentos auferidos pelos trabalhadores e empresas dos mais variados segmentos, que se veem cada dia mais sobrecarregados por despesas de toda sorte, sem a possibilidade de adimpli-las tal como faziam anteriormente.

Como se sabe, muitas destas empresas possuem encargos mensais fixos com o aluguel dos imóveis onde estão estabelecidas, por meio dos contratos de locação comercial/não residencial.

A questão que se coloca, portanto, é: Como ficam os contratos de locação diante da recessão econômica ocasionada pela pandemia de COVID-19? Existe alguma possibilidade de revisão destes contratos?

Via de regra, os contratos podem ser revistos em decorrência de um fato superveniente, extraordinário e imprevisível, cujos impactos atinjam diretamente a base econômico-financeira da relação contratual que foi constituída, culminando, na maioria das vezes, no inadimplemento obrigacional de uma das partes.

O ordenamento jurídico brasileiro prevê até mesmo a possibilidade de resolução (extinção) do contrato, caso presentes seus respectivos requisitos, muito embora a preferência do judiciário seja pela revisão das cláusulas contratuais, como forma de preservar ao máximo as relações negociais estabelecidas.

Tanto a Lei do Inquilinato (Lei nº 8.245/91), quanto o Código Civil (Lei nº 10.406/02), autorizam expressamente a revisão judicial dos contratos diante da ocorrência de fatos extraordinários e imprevisíveis que tornem a prestação excessivamente onerosa para uma das partes.

Com base nas inúmeras decisões governamentais de enfrentamento à pandemia de COVID-19, podemos dizer que a maioria dos trabalhadores e empresas cumprem os requisitos exigidos para a revisão dos contratos de locação dos imóveis urbanos, residenciais ou comerciais.

Como dito anteriormente, trata-se de uma clara hipótese de imprevisibilidade e onerosidade excessiva, que possibilita a intervenção judicial na esfera privada, como medida para restabelecer a equidade de condições entre as partes contratantes. Vale notar, nesse sentido, o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) quanto à questão. Vejamos:

 

AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. DIREITO PROCESSUAL CIVIL (CPC/73). AÇÃO REVISIONAL DE CONTRATO DE LOCAÇÃO. JULGAMENTO MONOCRÁTICO. POSSIBILIDADE. MANUTENÇÃO DO EQUILÍBRIO ECONÔMICO CONTRATUAL. ONEROSIDADE EXCESSIVA. REVISÃO CONTRATUAL. CABIMENTO. 1. O relator está autorizado a decidir monocraticamente recurso especial, pois eventual nulidade da decisão singular fica superada com a apreciação do tema pelo órgão colegiado em agravo regimental. 2. “Os comandos dos arts. 18 e 19 da Lei n.º 8.245/1991 autorizam que tanto o locador quanto o locatário, passados 3 (três) anos da vigência do contrato de locação ou de acordo por eles anteriormente celebrado a respeito do valor do aluguel, promovam ação objetivando a revisão judicial da referida verba, com o propósito de ajustá-la ao preço de mercado, servindo, assim, como instrumento jurídico para a manutenção do equilíbrio contratual e o afastamento de eventual situação de enriquecimento sem causa dos contratantes.” (REsp. 1566231/PE, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 01/03/2016, DJe 07/03/2016). 3. O Superior Tribunal de Justiça possui entendimento firme no sentido de que a intervenção do Poder Judiciário nos contratos, à luz da teoria da imprevisão ou da teoria da onerosidade excessiva, exige a demonstração de mudanças supervenientes nas circunstâncias iniciais vigentes à época da realização do negócio, oriundas de evento imprevisível (teoria da imprevisão) ou de evento imprevisível e extraordinário (teoria da onerosidade excessiva). 4. Não apresentação pela parte agravante de argumentos novos capazes de infirmar os fundamentos que alicerçaram a decisão agravada. 5. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO.

(STJ, AgInt no REsp. 1543466-SC, 3ª Turma, Julgamento: 27/06/2017)

 

Ainda a título exemplificativo, uma rede composta por 16 (dezesseis) concessionárias de veículos automotores ajuizou ações alegando que, embora não tenha realizado demissões por conta do corte de receitas, encontrava-se com insuficiência de fundos para arcar outros encargos fixos essenciais, especialmente a locação das 16 (dezesseis) lojas espalhadas pela cidade, com aluguéis que somam um valor mensal superior a 01 (um) milhão de reais.

Em uma das ações, a juíza de Direito Flávia Poyares Miranda, da 28ª (vigésima oitava) Vara Cível de São Paulo, disse que “a pandemia mundial acarretou a paralisação de diversas atividades, causando profundo impacto na vida das pessoas”. Assim, ela deferiu a tutela de urgência para que, enquanto perdurarem os efeitos da pandemia de COVID-19, com o mínimo de quatro meses após o retorno da quarentena, prorrogáveis, sejam suspensos os efeitos das do contrato no ponto sobre a cobrança do aluguel, “impedindo a declaração de mora pelo credor e que este, por conseguinte, intente a cobrança do débito e/ou a resolução do contrato e retomada de imóvel”.

Em outras ações, a empresa ainda conseguiu outras 03 (três) decisões judiciais favoráveis, nas quais os magistrados reconheceram a grave situação econômica pela qual as empresas estão passando. (Fonte: https://www.migalhas.com.br/quentes/324651/decisoes-judiciais-suspendem-alugueis-de-estabelecimentos-para-conter-crise-do-coronavirus).

No mesmo sentido, o juiz de Direito Fernando Henrique de Oliveira Biolcati, da 22ª (vigésima segunda) Vara Cível de São Paulo, deferiu liminar e determinou a redução no valor do aluguel pago por restaurante em virtude da atual crise ocasionada pela COVID-19. Dessa forma, a empresa efetuará pagamentos relativos a 30% (trinta por cento) do valor original do aluguel, o que corresponde a R$ 9.170,58 (nove mil, cento e setenta reais, e cinquenta e oito centavos), enquanto durar a crise sanitária.

Na decisão, o juiz cita o Decreto Estadual nº 64.881/20 que, em seu artigo 2º, inciso II, proíbe a abertura ao público das atividades de restaurante. “Tal situação ocasionou a queda abrupta nos rendimentos da autora, tornando a prestação dos alugueres nos valores originalmente contratados excessivamente prejudicial a sua saúde financeira e econômica, com risco de levá-la à quebra”, afirmou o juiz.

De acordo com o magistrado, a pandemia fará todos experimentarem prejuízo econômico, principalmente no meio privado. Afirma, nesse sentido, que “cabe ao Poder Judiciário, portanto, intervir em relações jurídicas privadas para equilibrar os prejuízos, caso fique evidente que pela conduta de uma das partes a outra ficará com todo o ônus financeiro resultante deste cenário de força maior.” (Fonte: https://m.migalhas.com.br/quentes/323789/restaurante-pagara-30-do-aluguel-durante-pandemia).

Vejamos ainda outras decisões judiciais sobre diferentes segmentos comerciais:

 

  • Aluguel em aeroporto:

O juiz Federal Friedmann Anderson Wendpap, da 1ª (primeira) Vara de Curitiba/PR, suspendeu o pagamento de aluguéis para a Infraero, referente à locação de espaço comercial no aeroporto internacional Afonso Pena.

Ao analisar o caso, o magistrado considerou que a empresa em questão, que pedia a suspensão do pagamento, está inserida no conjunto de empresas com maior vulnerabilidade financeira diante da paralisação forçada da economia. Segundo ele, as microempresas possuem relativamente pequeno capital de giro e fluxo de caixa com pequena autonomia para funcionamento sem receitas.

A determinação vale até o fim do estado de calamidade pública.

 

  • Lojas em shopping:

A juíza de Direito Bruna Marchese e Silva, da 8ª (oitava) Vara Cível de Campinas/SP, suspendeu pagamento, por restaurante localizado em praça de alimentação de shopping, do aluguel mensal mínimo e fundo de promoção e propaganda.

A suspensão do pagamento vale enquanto a determinação de fechamento dos shoppings em razão da pandemia permanecer.

Decisão semelhante aconteceu no DF. Pela mesma motivação, o juiz de Direito Julio Roberto dos Reis, da 25ª (vigésima quinta) Vara Cível de Brasília/DF, autorizou que lojista suspenda o pagamento de aluguel mínimo e do fundo de promoção e propaganda ao shopping enquanto perdurarem as medidas de restrição

 

  • Escritório de advocacia:

Um escritório de advocacia do Distrito Federal conseguiu a redução de aluguel. A determinação foi do desembargador Eustáquio de Castro, do TJ/DF, ao determinar a redução do valor do aluguel de um escritório de advocacia de R$ 2 mil para R$ 1,3 mil mensais, referente aos meses de março, abril e maio de 2020.

 

  • Agência de turismo:

O juiz de Direito Mario Chiuvite Júnior, de São Paulo/SP, deferiu tutela provisória de urgência para determinar a suspensão do aluguel de uma agência de turismo. Com a decisão, a locatária deverá se abster de inscrever o nome da autora e dos seus fiadores nos órgãos de proteção ao crédito e suspender a cobrança de aluguéis até perdurar os efeitos da pandemia.

O magistrado também determinou a suspensão do fundo de promoção até dezembro de 2020 e isenção da cobrança do 13º (décimo terceiro) aluguel. Além disso, o locatário deverá cobrar proporcionalmente o condomínio enquanto perdurar o fechamento do shopping, sob pena de multa diária de 03 (três) mil reais.

(Fonte: https://m.migalhas.com.br/quentes/324677/por-crise-do-coronavirus-decisoes-judiciais-suspendem-alugueis).

 

Por fim, faz-se relevante ressaltar que, antes de adotar medidas judiciais, é sempre recomendável a tentativa de revisão amigável dos aluguéis em vigor, caso o locatário preencha todos os requisitos destacados para a modificação do valor pago.

Essa recomendação é, inclusive, extraída do princípio da boa-fé objetiva, que deve permear as relações constituídas pelos contratantes. Por isso, deve-se buscar, em primeiro lugar, a resolução consensual, deixando a intervenção judicial apenas para uma última hipótese, na qual a negociação extrajudicial restou infrutífera.

O quadro grave provocado pela pandemia de COVID-19, agravado em termos econômicos pelas decisões estatais de suspensão de atividade empresariais, autoriza claramente a possibilidade de revisão contratual, dada a situação de imprevisibilidade enfrentada pelos contratantes. A própria Lei da Liberdade Econômica, que alterou o Código Civil de 2.002, manteve a possibilidade de revisão contratual de forma excecional e limitada, mesmo nos contratos empresarias.

 

Victor Targa Alves

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